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Como um pouco por todo o mundo, existem artes marciais de autodefesa tanto vocacionadas para o povo assim como para as forças de segurança e militares afim de estarem preparados para superar ataques de inimigos armados principalmente em situação de desigualdade.
Fomos descobrir o Systema, uma arte marcial Russa com essa mesma filosofia, estar preparado para reagir, desarmar e neutralizar o oponente seja por uma imobilização ou uma projecção.
A sua origem remonta a quase toda a história da Rússia, em que os habitantes eram constantemente atacados por povos de diversas origens, com armas e técnicas diferentes entre si. Isto mobilizou o povo russo a desenvolver uma arte que pudesse responder a essas ameaças. Para isso as técnicas são livres, não obedecem a uma estrutura rígida e era baseada no instinto de cada um aliado à sua força e o treino que possuía.
Com a mudança de regime na Rússia em 1917, foram suprimidas todas as tradições nacionais neste âmbito e caso fossem apanhados a praticar esta arte podiam ser severamente punidos.
Contudo as autoridades viram as grandes potencialidades do Systema e adoptaram o mesmo para ensinar as forças de Operações Especiais, mas mantido em segredo pelas altas patentes militares.
Somente nos anos 90 é que foi exposta ao exterior da Rússia pelos Mestres Vladimir Vasiliev e Mikhail Ryabko.
O Systema também é praticado em Portugal, e hoje vamos estar com o Mestre Stefan Moncada da escola Systema Moncada, cidadão português praticante da modalidade há mais de 10 anos e ensina-a há seis. A academia de Stefan Moncada está presente em Lisboa, Odivelas e Sintra, dando continuidade ao método de ensino do Mestre Vladimir Vasiliev.
Não tem graduações, não tem técnicas fixas, não tem as tradicionais Katas que muitas artes marciais têm. Vamos conhecer melhor o Systema conversando com o Mestre Stefan Moncada.
AMMA: O que torna o Systema tão diferente das artes marciais mais conhecidas?
Stefan Moncada: Não devemos pensar o Systema como as restantes artes marciais. O Systema não tem nenhum movimento que o possa caracterizar nem nenhum conceito que o possa definir portanto a resposta a esta questão não é fácil. Costumamos dizer que no Systema pode fazer-se tudo e que apenas existem os limites que nos impomos a nós mesmos (físicos e psicológicos).
Portanto, a maior diferença entre o Systema e as restantes artes marciais é que no Systema impera a criatividade e espontaneidade. Isto porque o Systema, para além do combate e da condição física, intervém também na saúde e no estilo de vida do praticante, através nomeadamente de exercícios de respiração. É uma filosofia do corpo e de como o stress nos afecta em vários níveis ao ponto de poder prejudicar a nossa vida ou pior, a nossa sobrevivência.
Em termos funcionais, no Systema, somos todos iguais. Existem obviamente praticantes mais experientes mas não há nenhuma hierarquia imposta. O respeito entre os colegas deve ser merecido e aparecer natural e conscientemente. Não temos nenhuma farda de treino e pode e deve-se treinar em todas as circunstâncias. Não há nenhum dojo que limite o espaço de treino. Pode fazer-se Systema num ginásio, num parque e até mesmo num bar!
O Systema procura ser a expressão da liberdade e do desconfinamento mental. Mas, não seguir regras, katas ou coreografias não significa que não se deva seguir uma pedagogia muito precisa. O erro grave de algumas pessoas é achar que não necessitam de um professor que os guie.
Diria portanto que o que torna o Systema tão diferente das restantes artes marciais é o facto de ir directamente à origem, preparando a mente e o corpo sem os condicionar de uma maneira específica. Costumamos dizer que quem faz Systema poderá ter mais facilidade em adaptar-se a outros métodos de combate, enquanto o inverso não é necessariamente verdade. Como diz o major Konstantin Komarov, «todas as outras artes marciais têm um objectivo específico: chegar à vitória numa certa competição, aprimorar uma técnica ou chegar a uma certa habilidade. O Systema é muito vasto – do Systema pode-se ir para qualquer arte marcial. É como estar no topo da colina e poder descer em qualquer direcção. Mas reparem que é um processo descendente.»
AMMA: Não tendo técnicas rigorosas, como se treina o Systema?
SM: Outra questão difícil. Retomando a expressão de um dos meus mestres, «o Systema é simples mas não é fácil». Eu diria até que é das artes mais difíceis que conheço, o que não significa que não seja eficaz logo numa fase inicial de aprendizagem. São duas coisas distintas. Tenho o grande privilégio de ter praticado várias artes marciais seriamente e de continuar a praticar algumas delas. Quando entrei no mundo do Systema, já tinha anos de prática de artes marciais e, no entanto, foi-me muito difícil compreender o que devia procurar treinar no Systema. Posso dizer sinceramente que foram precisos alguns anos (a treinar arduamente) e muitas horas de treino com os mestres para finalmente compreender do que trata o Systema. Portanto, não me espanta as pessoas não perceberem o Systema quando vêem vídeos. Algumas delas até experimentam durante uma temporada, ficam muito entusiasmadas inicialmente, mas depois desistem antes do tempo e ficam-se pela “travessia no deserto.”
As artes marciais são uma das melhores expressões da perseverança e da paciência. Os efeitos não são sempre claros e visíveis a curto prazo. É por isso que não estão muito na moda nesta sociedade dos prazeres imediatos. As pessoas não dão tempo suficiente ao tempo!
Mas vamos ao treino do Systema. Temos quatro pilares: respiração, relaxamento, movimento e estrutura. Tudo o que fazemos num treino, quer inclua golpes, chaves ou projecções é uma consequência do desenvolvimento destes pilares. O desafio é respeitá-los a todos pois são interdependentes. A dificuldade advém do facto de ser difícil estar atento aos quatro pilares simultaneamente.
O Systema não tem técnicas no sentido em que não treinamos coreografias de combate. Mas a aprendizagem do Systema é muito pormenorizada. E às vezes tão subtil que pode passar despercebida.
Mais do que ensinar ao corpo e à mente uma coreografia ou a mexer-se sistematicamente da mesma maneira, o Systema vai procurar maximizar a eficiência que se pode fazer em cada movimento. Mais do que ensinar técnicas de combate, o Systema procura ensinar a mexer o corpo da melhor maneira.
Baseando-se assim na liberdade e na personalidade de cada ser humano, o Systema deve ser tolerante e aberto. O aluno de Systema deve responsabilizar-se pelo seu próprio treino. O professor de Systema não pode reproduzir constantemente o mesmo esquema de aula. Vai contra a essência da arte. Nenhum treino deve ser igual ou repetitivo. Aí reside uma das grandes dificuldades da prática e ensino do Systema.
Por causa da complexidade do espírito humano e da tão grande diversidade de cenários de combate possíveis, as artes marciais foram excluindo alguns cenários de combate, para se especializar numa área específica do treino e ser o melhor possível nessa área. Entrámos assim na era das especializações e dos especialistas não só nas ciências como nas artes de combate. Como tudo, há sempre vantagens e desvantagens em cada abordagem. O esgrimista vai ser o melhor no combate de paus ou lâminas, o praticante de Jiu Jitsu Brasilieiro ou Sambo vai ser o melhor no combate de chão, o judoka nas projecções, o karateka, kick boxer ou boxer nos socos e pontapés, e assim por adiante. Toda a questão é saber o que privilegiamos e excluímos deliberadamente e o que procuramos ao certo nas artes marciais.
Convém lembrar que estes estilos de combate com estes nomes específicos são relativamente recentes, têm 100 ou 150 anos no máximo. O seu nascimento coincide com um maior tempo de paz nas sociedades. Antigamente, os povos estavam mais frequentemente em guerra portanto os guerreiros aprendiam mais nos campos de batalha do que propriamente em aulas formais. Testavam-se constantemente e eram sempre confrontados com o perigo de um confronto real com tudo o que isso inclui: múltiplos oponentes, diversos tipos de armamento e armaduras num contexto imprevisível (floresta, campo, cidade, de dia ou noite etc). Não se podia ser bom só numa área de combate. Tinham de ser bons em geral para poder sobreviver mais tempo! Tinham de ter um corpo e espírito preparado e atento. Voltando ao major Konstantin Komarov, «para mim, a essência do Systema é aprender a lidar com qualquer meio ambiente desfavorável, o que significa aumentar as chances de sobrevivência. Não é possível prever todos os possíveis cenários negativos em que nos possamos encontrar na vida. Nesse sentido, não se pode preparar cada situação de maneira separada. Ao invés disso, temos de nos preparar para todas de uma só vez. Daí em Systema, técnicas específicas e métodos de trabalho não serem tão importantes como as mudanças que ocorrem no corpo e psique do aluno.»
O Systema não divide o ser humano em áreas. Um praticante de Systema deve compreender uma projecção, ser livre de se deitar no chão ou de se levantar, ser capaz de se defender a partir duma cadeira e trabalhar armado sem que isso lhe mude necessariamente o espírito e cause bloqueios no corpo. Deve compreender o princípio que subjaz às técnicas para ser livre delas. Compreendendo que uma chave numa articulação consiste no domínio do princípio das alavancas, deveríamos ser capazes de fazer chaves a partir de qualquer posição (pé, deitados no chão ou sentados numa cadeira por exemplo). Por isso, numa aula normal de Systema não se deve seccionar áreas, treino de chão, combate em pé ou sentado. Devemos treinar todas essas transições simultaneamente. Contudo, na aprendizagem das chaves, por exemplo, o aluno explora o princípio das alavancas de maneira muito detalhada.
Costumo pensar que o Systema é a arte marcial da complexidade por excelência. É aí que reside uma das suas dificuldades: o Systema é um método de treino. Exige que o praticante domine minimamente cada área para ser livre de passar por elas sempre que necessário e fazendo assim desaparecer as fronteiras.
O Systema é fundamentalmente uma metodologia de treino que obedece a certos princípios. Para um mesmo problema existem tantas soluções (ou técnicas) como existem seres humanos diferentes. O Systema enraíza-se na criatividade e unicidade de cada ser humano e devemos por isso explorar essas qualidades quando treinamos. Há pessoas que se dão bem com isso outras que necessitam de movimentos mais robotizados ou repetitivos e não há nenhum problema com isso. Julgo que é preciso haver uma comunicação entre as duas abordagens. As artes marciais não são senão diversas expressões de um mesmo fenómeno. E as diferenças nas artes marciais são devidas às diferenças de método de treino. O método de treino é, a meu ver, mais importante do que a arte marcial que se pratica.
AMMA: Que tipo de armas e combate são mais estudados nos treinos do Systema?
SM: O nosso mestre Vladimir Vasiliev dá muito enfâse ao treino com faca porque a faca funciona como uma lupa, revela mais pormenores. Se uma pessoa é mais tensa ou rígida a faca irá denunciá-lo. Não precisamos de falar. Quando tenho novos alunos e que querem testar ou que tentam resistir porque são fortes fisicamente, não digo nada. Pego numa faca de treino de alumínio e ponho-os à prova. Em geral, resulta sempre. Aprendem logo a mexer porque não dá para bloquear uma lâmina. A faca no Systema não procura reproduzir portanto o combate clássico de faca contra faca como se vê nas coreografias de Kali e Penchak Silat, embora também se treine isso. A faca no Systema é uma ferramenta de treino que revela muita coisa. Pelas mesmas razões referidas, no Systema também treinamos com o chicote russo chamado nagaika paus e bastões e pistolas de treino.
Outra situação de combate que privilegiamos muito é o trabalho contra múltiplos oponentes porque também revela imediatamente as nossas maiores limitações. Mais uma vez, uma pessoa forte fisicamente e com alguma experiência de combate pode resistir ou dificultar o trabalho contra um adversário. Mas se adicionarmos um terceiro elemento na equação, a mesma pessoa dificilmente será capaz de resistir a dois adversários ao mesmo tempo. Terá de aprender a mudar de resposta. Basicamente o Systema revela que a resposta certa é aquela que for mais inteligente e nos permitir viver mais tempo.
Depois, em termos de combate corpo-a-corpo, fazemos tudo o que o corpo humano permite fazer desde pegas, chaves e projecções a golpes. Como disse mais acima, o Systema não separa as diversas áreas de combate. Uma das coisas que estudamos muito é aprender a recuperar dos golpes. É da maior importância minimizar o impacto negativo que o stress causa no ser humano. E uma das coisas que o soco revela muitas vezes não é a dor que ele causa mas sim a nossa apreensão psicológica da dor. Nesse sentido, aprendemos muito a levar golpes de maneira progressiva para deixar que a tensão causada pelo medo se dissipe naturalmente.
AMMA: No Systema prevalece mais a defesa contra armas ou o combate corpo-a-corpo?
SM: Nem um nem outro. Não se deve cair no erro de distinguir as coisas para fins de clareza aparente. Num treino clássico de Systema duas pessoas podem estar a lutar no chão e de repente um de nós coloca lá uma faca e eles têm de se desenvencilhar da melhor maneira. O propósito é que eles continuem a treinar de maneira inteligente sem se deixar levar pelo stress causado pela alteração repentina de cenário.
Outra situação: duas pessoas podem estar a treinar golpes e um terceiro aparece por trás e golpeia-os sem eles estarem à espera. Procuramos treinar o inesperado para não cair na tentação da segurança de padrões de treino bem definidos e constantes. Mas é sempre necessário adaptar a resposta ao tipo de armamento. Nesse sentido, convém treinar pormenorizadamente a defesa ou ataques com certas armas.
Dito isto, é óbvio que se treina mais o combate corpo-a-corpo pois é a coisa mais provável que aconteça entre civis. Se o treino for dirigido para as forças de segurança, terá de haver uma maior integração do treino com armas. O treino de Systema dependerá do público em questão e do que cada pessoa procura.
AMMA: Como se faz um treino de Sytema descontraído e subtil utilizando o movimento natural?
SM: Em Systema, movimento natural significa liberdade e instinto. Significa fazer um gesto não premeditado e eficiente. Significa responder da maneira mais apropriada face a uma situação inesperada. E porque é que damos tanto enfâse à exploração de movimento? Porque numa situação real de combate, não há tempo para pensar. Tem de se agir de imediato. O problema é que o stress tem consequências nefastas no nosso organismo: aumenta a pressão arterial, os batimentos cardíacos, gera apneias respiratórias, paralisa, etc. É como a expressão “freeze, flight or fight”. O Systema procura diminuir essa cadeia de reacção mudando a resposta convencional ao perigo. Portanto ao associar um golpe à dor, o meu corpo irá ficar tenso e apreensivo ao contacto. Se eu treinar o contrário, ou seja, aprender a mexer e respirar enquanto recebo golpes, então terei mais chances de não bloquear numa situação real. Tudo depende das associações que criamos na nossa mente/corpo. Assim, utilizar movimento natural não é um fim em si mesmo mas faz parte de um processo.
A exploração, criatividade e espontaneidade são portanto alguns dos elementos mais importantes e difíceis de treinar, mesmo em Systema. A robotização dos movimentos e de gestos é o que mata o movimento natural. Treinar de maneira descontraída utilizando movimentos naturais e subtis sem fazer constantemente movimentos conhecidos, faz-se numa primeira fase através de um treino lento. Ou seja, aprendemos a mexer lentamente para termos consciência de todos os gestos que fazemos, para assim reduzir os movimentos reflexos reféns do medo e da tensão. Depois, obviamente que aumentamos a velocidade. Temos de alterar constantemente as velocidades das defesas e ataques para desenvolver respostas sempre adaptadas e proporcionais. Tenho muitas vezes alunos novos que aparecem e quando os ataco a uma velocidade moderada, eles respondem três vezes mais rápido causando mais agressão e stress do que o próprio agressor. Temos de nos perguntar quem é que queremos ser quando treinamos artes marciais? Se nos queremos transformar em monstros ou se queremos permanecer humanos.
Em suma, procuramos treinar de maneira relaxada mas o treino não é necessariamente relaxado. Aprender a relaxar e respirar quando recebemos golpes no plexo ou na cara não é propriamente agradável nem tranquilizante. Por isso o treino é feito num ambiente desafiante e de superação. E, para isso, é importante criar uma atmosfera de confiança, amizade e respeito para as barreiras psicológicas e físicas se desvanecerem e entrarmos nesse espaço onde crescemos e nos transformamos. Como diz o mestre Martin Wheeler, «nunca se esqueçam que estão a treinar uma arte da mente. O Systema só é parecido com uma arte marcial, visto por fora.»
AMMA: Esta arte é livre de graduações. Como é que fazem a gestão dos treinos para iniciantes, praticantes mais experientes e como se alcança o grau de Mestre, ou o equivalente para a poder ensinar?
SM: Um treino clássico de Systema pode ser inicialmente confuso quando não estamos habituados. As bases, como em qualquer arte marcial, são os elementos mais importantes e que todos têm de dominar. Só que em vez das bases serem uma posição ou técnica específica, as bases do Systema são os quatro pilares de que falámos mais acima pois são esses pilares que dão origem às ditas “técnicas”. Enquanto professor e praticante de artes marciais um dos meus prazeres e maiores alegrias é ver um aluno inexperiente fazer “técnicas” perfeitas e complexas de maneira espontânea. Isso acontece porque ele permaneceu fiel aos princípios e não procurou imitar ou reproduzir uma técnica ou coreografia que o seu corpo ainda “não sentisse” ou para a qual não estava preparado. Costumo dizer que todo o trabalho será aprender a tomar consciência dessa eficiência inata que todos temos e saber reproduzi-la quando queremos. Lá está, ter a inteligência de saber o que se pode ou não fazer. O desafio do Systema, é que as pessoas dão mais credibilidade aos movimentos que imitam do que aos movimentos gerados por si. Noutras palavras, em vez de estar sempre a dizer o que fazer, devemos criar espaço para os alunos descobrirem e explorarem os movimentos que são deles.
As aulas são feitas de maneira a que todos possam treinar em conformidade com as suas competências. Os alunos têm de adaptar a velocidade e complexidade de respostas em função dos seus níveis e anos de prática. Contudo, enquanto professor, ensino primeiro alguns movimentos que julgo serem os mais seguros em todas as situações (escapar, tomada de distância, golpes, etc.). Uma vez que uma pessoa saiba “sobreviver”, ensino-lhe técnicas de imobilização ou projecção. Movimentos mais complexos e perigosos de realizar em função das situações. Os alunos mais avançados sabem quando é seguro agir e sabem qual a resposta mais adequada. Todo o trabalho consiste em saber as prioridades e distinguir entre um gesto eficaz e seguro e um gesto mais estético e perigoso. Nem sempre os dois se alinham.
Quando um aluno pretende enveredar pelo ensino do Systema, existem várias hipóteses. Na nossa escola, Systema Vasiliev, o mestre Vladimir Vasiliev submete-nos a um exame que consiste em aplicar Systema em várias situações. Em função do grau de maturidade na arte, ele depois autoriza ou não a pessoa a ensinar Systema tornando-se primeiro “Instructor-in-training” e depois “full instructor”.
AMMA: Sendo o Systema uma arte marcial centenária, sabe-se se na altura os Mestres Vladimir Vasiliev e Mikhail Ryabko tiveram alguma pressão para não a trazer para fora da Rússia?
SM: Sabemos que o Systema tem centenas de anos e que foi adaptado no século XX pelas forças especiais russas. Até à queda da União Soviética ninguém tinha ouvido falar nesta arte marcial. Foi Vladimir Vasiliev quem começou a divulgá-la nos anos 1990, depois de ter estado mais de dez anos ao serviço das forças especiais russas. Nessa altura instala-se no Canadá onde abre a primeira escola de Systema. Se não fosse por ele, se calhar esta arte ainda seria desconhecida para os ocidentais. Não se sabe de nenhuma directriz governamental ou militar para impedir a difusão do Systema para fora da Rússia mas o Systema ainda tem muitos segredos. Sabe-se que Vladimir Vasiliev foi aluno do Coronel Mikhail Ryabko e que este último aprendeu com o seu pai, um dos guardas de elite de Estaline. Mas acima dele, não se sabe de onde veio. A história do Systema ainda é relativamente recente e como está intimamente ligada ao exército, espionagem e contra-terrorismo, ainda há muita coisa que não se sabe.
AMMA: Foi aluno directo de algum deles? Como era o estilo das suas aulas e o seu temperamento? Que recordações trás dos seus treinos?
SM: Sim, tive e continuo a ter o privilégio de ser aluno dos fundadores da nossa escola, Vladimir Vasiliev e Mikhail Ryabko. Tenho mais contacto com Vladimir Vasiliev por várias razões. Uma delas é que ele fala inglês e se desloca para a Europa com mais facilidade do que Mikhail Ryabko. O Systema desconstrói a nossa ideia das artes marciais e de como um mestre deve ser. Recordo-me do meu tempo nas artes marciais japonesas, tive a sorte do meu mestre me ter apoiado financeiramente em muitos estágios e pude assim, graças a ele, viajar e treinar com muitos mestres. Tinham todos as maiores graduações dos seus estilos e assim se comportavam e agiam. Sentia-se uma força à volta deles e essa postura era cultivada nessas artes marciais. O Systema desfez-me totalmente essa concepção. No Systema, conheci autênticos mestres com uma eficiência e subtileza técnica estrondosa e que se comportavam da maneira mais humilde e simples possível. Aliás, nem sequer se usa o título de mestre em Systema. Fala-se mais em instrutor ou professor. O título de mestre é atribuído pelos alunos a pessoas como Vladimir Vasiliev ou Mikhail Rybako.
A primeira coisa que vejo quando penso no Vladimir Vasiliev é o seu sorriso. É um homem extremamente carismático e sorridente capaz de nos inspirar calma ao mesmo tempo que nos dá um golpe que nos prega ao chão. Este contraste entre uma aparência pacífica e amigável e gestos pesados, impiedosos e afiados como lâminas são um traço característico da arte. É ao mesmo tempo uma das suas grandes qualidades: não deixa que uma acção contamine o nosso estado emocional. Não temos de parecer agressivos ou fortes para fazer o que tem de ser feito.
O meu primeiro contacto com Vladimir Vasiliev foi confuso. Não chegava a compreender o que se fazia porque a pedagogia era demasiado diferente do que tinha previamente vivenciado nas artes marciais. Mas os movimentos e aplicações tanto do Vladimir como dos seus alunos mais experientes deixavam-me estupefacto pela sua eficácia e fluidez. Eles faziam tão natural e simplesmente o que eu tinha demorado 10 anos a fazer nas artes tradicionais japonesas. Não percebia mas tinha fé e confiança no Systema e isso bastou-me para aguentar até finalmente compreender.
Outro ponto muito importante é a alegria no treino. Vladimir Vasiliev faz questão que haja uma atmosfera de bem-estar, propícia ao crescimento individual. A cultura japonesa é muito mais hierárquica e tem imensos rituais que se infiltraram nas suas artes. Existe uma atmosfera mais solene e séria que traduz o “modus vivendi” desse povo. O Systema como não provém da cultura asiática, não herdou esse “espírito”. Mas não deixa de haver respeito no treino.
AMMA: Como é que o Systema está divulgado noutros países? Tem evoluído da mesma forma como em Portugal?
SM: O Systema está presente em todos os continentes. Está na Europa desde os anos 2000 e tem evoluído bastante bem nos países como França, Inglaterra e Alemanha onde existe mais cultura marcial e desportiva. Mais importante ainda, continua a servir o seu propósito e muitas forças de segurança fora da Rússia treinam também Systema. Também já aparece no cinema e em alguns filmes e séries televisivas.
Em Portugal, as coisas têm evoluído lentamente. Abri a escola em 2014/2015 e temos tido sempre mais gente. Mas entre as pessoas que vão e vêem, as coisas evoluem lentamente. No entanto, o Systema ainda sofre por ser muito pouco conhecido pelo público em geral portanto, tem de se apostar muito em acções de divulgação.
AMMA: Há mais escolas em Portugal?
SM: Sim, existem duas escolas de Systema em Portugal, que eu tenha conhecimento. Existe a minha – Systema Moncada, que pertence à escola de Vladimir Vasiliev e a escola chamada Homo Ludens Lx dirigida pelo João Rodrigues, com quem colaboro frequentemente e que segue a metodologia de Alex Kostic.
Tenho esperança que consigamos divulgar mais o Systema em Portugal pois a sua eficiência e alegria que proporciona já foi mais que provada. Julgo que agora seja uma questão de tempo e de promoção da modalidade.
AMMA: O Systema é uma arte de combate dirigida a homens e mulheres de qualquer idade? Tem algum pré-requisito?
SM: O Systema é uma arte de combate dirigida a todo o ser humano, homem ou mulher de qualquer idade. O meu aluno mais sénior tem 73 anos e, desde que está connosco há 5 anos, está presente em todos os treinos, seminários e estágios intensivos que organizo. É evidente que ele adapta o treino às suas capacidades físicas mas não teme nada e não inventa desculpas para não estar presente. É dos alunos mais assíduos e inspiradores que tenho. Costumo dizer que quero ser como ele “quando for grande”. E apesar, de a maior parte dos alunos serem homens, também temos algumas mulheres já com um bom nível, o que me deixa muito satisfeito. Também temos aulas de Systema para as crianças em que as ensinamos exercícios de coordenação, mobilidade, trabalho em equipa, etc.
AMMA: Que tipo de equipamento que utilizam nos vossos treinos? Basta levar roupa confortável e as armas de treino?
SM: Em termos de equipamento basta levar calças ou calções e t-shirt e uma mente aberta.
AMMA: Por norma são procurados por empresas ou individualmente por profissionais de segurança?
SM: Por norma, somos procurados por pessoas individuais com motivações muito diversas. Existe o interesse por parte de algumas forças de segurança mas trabalho sobretudo com civis.
AMMA: O Systema foi sofrendo adaptações ao longo da sua história, conforme o tipo de ameaças, técnicas e armas que os oponentes trouxeram contra os cidadãos russos. Como é que foi feita essa evolução mesmo já no século XX com outro tipo de ambiente?
SM: Como o Systema não é um método rígido conseguiu evoluir ao longo do tempo. As armas que usa vão mudando com o tempo mas a essência permanece a mesma. Como a base do Systema é o estudo do corpo e espírito humano, é uma arte intemporal.
AMMA: A sua academia tem três escolas na zona de Lisboa. Quando alguém vai ter consigo para aprender Systema, já sabe para o que vai, ou aparece movido pela curiosidade e fica?
SM: Damos treinos de Systema em dois locais em Lisboa (Estádio Universitário de Lisboa e Pontinha), Odivelas e Sintra. Regra geral, quando aparecem “turistas curiosos” poucos ficam. Só aqueles que simpatizam com esse modo de treinar e que não sofrem nenhum “curto circuito” continuam. A maior parte das pessoas que treinam Systema vem ter connosco porque já sabem mais ou menos do que se trata e porque pesquisaram na Internet. Já estão à espera de ver algo peculiar. Outros aparecem e ficam porque são atraídos pelo bem-estar que a liberdade no Systema lhes proporciona. Outros ainda são artistas marciais provenientes de outros sistemas de combate e que sentem que estão estagnados na sua arte. Vêem no Systema um modo de continuar no caminho das artes marciais sem negar o seu passado e continuar a evoluir. Alguns deles até continuam a treinar a sua arte enquanto fazem Systema e dizem-me como o Systema lhes ajudou a evoluir na sua própria disciplina, o que acho formidável.
AMMA: Aproximadamente quantos alunos tem a praticar consigo?
SM: Devo ter aproximadamente 50 pessoas inscritas. Mas entre os alunos que treinam regularmente, aqueles que aparecem de maneira mais esporádica e aqueles que deixam de treinar periodicamente e que voltam, devemos ser uma dezena em média por aula.
AMMA: Tem algum caso curioso para relatar, de alunos que tenham ultrapassado a espectativa com que começaram a praticar?
SM: Sim, muitos alunos ficam muito entusiasmados e não o escondem. E depois há aqueles mais discretos. Uns vêem ter comigo e dizem-me como o Systema os ajuda diariamente na vida profissional e social. Outros, nada me dizem quanto aos efeitos da prática mas fico a saber através de familiares como o Systema lhes mudou a vida. Já tive vários pais a virem ter comigo a agradecer sendo que um deles era a mãe de um jovem adulto.
Mas é preciso ter cautela com as expectativas. Muitos alunos demonstram grande motivação e são capazes de treinar 4 a 5 vezes por semana. O problema é que depois a “febre” passa e muitos deles deixam de treinar. Outros começam gradualmente, a treinar uma a duas vezes por semana e vão-se implicando cada vez mais no Systema. Esses em geral, são aqueles que ficam movidos pelo bem-estar real que o Systema já lhes proporcionou e não por expectativas exageradas de como poderia ser. Porque aqueles que têm expectativas altas inicialmente pensam que o Systema é fácil. Quando vêem o trabalho real que é requerido e que é um trabalho a longo prazo, a motivação já é outra. Como diz o mestre Vladimir Vasiliev, «é difícil para as pessoas por vezes entenderem ou aceitarem o Systema porque o elemento principal é trabalhar sobre si mesmo, e as pessoas não costumam gostar disso. Significa enfrentar a sua preguiça, orgulho e outras coisas.»
No meu caso, enquanto professor, todos os alunos ultrapassam as minhas espectativas quando se empenham e treinam regularmente. A maior dificuldade do Systema não é a pedagogia ou complexidade mas o facto de as pessoas terem pouco tempo para fazer o que é realmente bom para a alma, quer sejam artes marciais ou outras coisas.
Como disse mais acima, muitos alunos que começam a treinar sem experiência prévia em artes marciais, fazem movimentos muito avançados sem saberem. Isso dá-me sempre muita alegria e confiança no nosso método. Um episódio que me marcou foi com o meu irmão. Ele também treina artes marciais, é professor de Jiu Jitsu brasileiro no sul de França, em Montpellier. Organizo ocasionalmente seminários com ele porque partilhamos a mesma visão e paixão pelas artes marciais e ele simpatiza com o nosso método de treino. Durante uma das nossas sessões de Systema no chão, o meu irmão disse uma coisa extraordinária para uma pessoa tão experiente como ele. Ele pensava saber quase tudo da luta no chão e o Systema mostrou-lhe que ele apenas conhecia um ponto de vista. Considero o meu irmão um dos melhores lutadores de JJB com quem já treinei e tenho muito respeito por ele por isso quando ele fez tal afirmação, mais uma vez pude constatar a riqueza do nosso método. As técnicas que conhecemos tornam-se obsoletas se não soubermos como e quando aplicá-las. As defesas contra um adversário desarmado no chão e com regras, não são as mesmas que contra dois adversários ou quando existe uma arma no meio do conflito. Temos de moldar o nosso corpo para uma maior variedade de cenários. Há que desenvolver uma humildade no treino que ensine adaptação eliberdade.
AMMA: Qual é a ideia base que quer transmitir aos seus alunos para além do treino de arte de combate?
SM: Para além do treino de arte de combate desejo que todos saiam das minhas aulas alegres e em paz. Desejo fomentar o espírito de entreajuda no grupo porque o que vejo à minha volta é muito egocentrismo. As pessoas entram muitas vezes como consumidores só pensam em receber. As artes marciais não funcionam assim. Deve-se cultivar a gratidão para com as pessoas que nos fazem evoluir, quer sejam os nossos professores ou colegas de treino porque sem elas não temos nada. O treino das artes marciais deve sublinhar a interdependência de todos os seres humanos. Gastamos demasiado tempo no aprimoramento de técnicas e tempo a menos no desenvolvimento individual. O treino não consiste num objecto exterior mas no espírito humano. O conhecimento de si de que falamos nas artes marciais resulta das nossas interacções com os outros.
Diz-se muitas vezes que os alunos revelam o espírito do professor. Nesse sentido, espero que o meu grupo revele além da sua competência técnica, humildade, compaixão, força e integridade. Temos de criar laços de amizade e não de competitividade. Não treinamos somente para nós mesmos mas para o mundo à nossa volta. Por fim, desejo que as pessoas emanem paz e não violência. Um artista marcial experiente e seguro de si, deve ser justo e proteger-se a si e aos mais indefesos mas não deve incitar à violência e para isso tem de estar em paz consigo mesmo.
AMMA: Tem previstos dois estágios para este ano, um com o Mestre Kwan Lee sobre Protecção Pessoal para Novembro, e outro para mais breve com o Mestre Martin Wheeler sobre a luta com o bastão. Costuma ter boa adesão de Mestres estrangeiros a vir dar estágios em Portugal?
SM: O mestre Kwan Lee virá em Novembro mas tivemos de adiar o nosso seminário com Martin Wheeler por causa da pandemia do Corona vírus. Os mestres gostam sempre de vir a Portugal. Gostam da nossa hospitalidade, comida e aguardente! Temos sempre alguns participantes estrangeiros oriundos da Europa ou mesmo EUA. E para nós é um enorme prazer treinar e aprender com os melhores praticantes e professores nesta área.
AMMA: Costumam fazer este intercâmbio entre Mestres pelo mundo fora com a partilha de experiências e conhecimentos através dos estágios?
SM: Sim, existem muitos estágios internacionais organizados pelo mundo fora. Como a comunidade do Systema ainda é relativamente pequena, estes estágios internacionais são uma excelente maneira de nos encontrarmos e aprendermos uns com os outros.
AMMA: Também costuma ir ensinar no estrangeiro?
SM: Até agora o meu foco tem sido sempre disseminar o Systema em Portugal. Mas este ano tinha previsto ensinar Systema num estágio em Maio em Besançon, França, que teve de ser adiado por causa novamente do Corona vírus. Ia ser um seminário dirigido por 4 professores (um francês, um holandês, um finlandês e eu). Espero obviamente, desde que haja esse interesse, poder ensinar no estrangeiro até porque adoro dar aulas e porque sou professor de Systema a tempo inteiro.
AMMA: Como conheceu o Systema e quando começou a praticar?
SM: Conheci o Systema em 2008 através do meu mestre de budismo zen com quem já treinava também artes marciais. Começamos por comprar todos os dvd’s e livros sobre o Systema disponíveis nessa altura e fomos vendo e aprendendo tudo a partir daí. Depois quando o “vírus” do Systema se apoderou completamente de mim, fui ao Canadá ter com o próprio Vladimir Vasiliev e desde então sigo-o maioritariamente na Europa por ser mais perto e acessível.
AMMA: Quem foi o seu Mestre e que recordações tem dos treinos dele?
SM: Já faz 17 anos que treino artes marciais ininterruptamente portanto já conheci alguns mestres. Ainda hoje penso e falo com alguns deles embora já não treine as suas respectivas artes.
O mestre da minha escola é Vladimir Vasiliev e aprendo e transmito portanto o que ele nos ensina. Mas também aprendi muito com outros tais como o coronel Mikhail Ryabko, Martin Wheeler, Kwan Lee, os irmãos Brendon e Adam Zettler, Valentin Talanov, Andreas Weitzel, entre outros. Costumo organizar todos os anos alguns seminários internacionais em Lisboa. O próximo que temos marcado é com o mestre Kwan Lee sobre a Protecção Pessoal nos dias 14 e 15 de Novembro 2020.
AMMA: Que desafio quer lançar aos nossos leitores, para conhecerem melhor e poderem vir a praticar Systema?
SM: Espero que esta entrevista nos traga obviamente pessoas curiosas e dispostas a trabalhar sobre si mesmas. Não se deve julgar o Systema pelos vídeos ou simplesmente observando uma aula. O Systema tem de ser experimentado. Agora tudo depende das motivações pelas quais querem treinar artes marciais. Em função disso terão de escolher um ou outro sistema de combate. Infelizmente algumas pessoas deixam-se levar pelas modas e tendências e não se interrogam sobre o que desejam realmente ou sobre quem são e quem desejam ser.
Se as pessoas gostaram do conceito do Systema mas ainda não se sentem motivadas o suficiente, convido-as a ler a excelente introdução ao Systema redigida pelo próprio mestre Vladimir Vasiliev, The Russian System Guidebook.
De resto, venham treinar! Pode ser que mude a vossa vida!
Aproveito para agradecer a iniciativa do Pedro Mestre em conduzir esta entrevista! São contribuições preciosas para entender melhor o que se esconde nas artes marciais!
Texto: Pedro MF Mestre
Fotos: Arquivo de Stefan Moncada