Acabei de tomar mais uma resolução histórica, que espero não se revelar tão desacertada como muitas outras e que terá fortes repercussões no evoluir da minha actividade como “berdadeiro” desportista de largos recursos. Ou seja, aproveitando a maré de escrutínios, elegi (por larga maioria) o meu inimigo de estimação nestas lides da Orientação.
Esqueçam a minha fobia às pedrolas, o desgosto pelos pontos de água sem bebidas “reconfortantes”, a ausência de arcaboiço para trepar as belas dunas, a minha fraca resistência à canícula ou a raiva que tenho àqueles senhores “ET´s” que não me deixam fazer pontuações mais dignas. Decididamente, vou direccionar a minha animosidade para um elemento que pontualmente me arrelia, causa dor e me obriga a longos períodos de sofrimento.
Estou-me a referir ao indisciplinado, agressivo, sádico e traiçoeiro “ulex tojo europaeus”.
Há uns tempos que não lhe punha a vista (ai!...e o corpinho) em cima, mas se pretendia participar no III Open Amigos da Montanha, não tive alternativa senão enfrentá-lo novamente e de peito bem aberto. Ou melhor, de peito, pernas, braços, mãos e sei lá mais o quê (ainda vou investigar umas picadelas esquisitas que tenho aqui para baixo, hehe!). Inclusive, este texto esteve em risco de não ser escrito, tal é a maleita nas pontas dos dedos, que quase me impedia de “teclar”.
O Monte de S. Mamede, nas cercanias de Viana do Castelo, lugar onde se disputou esta competição, que abria a época da Taça FPO/Norte, é sem dúvida nenhuma, uma área espectacular em termos paisagísticos e tecnicamente interessante para a modalidade, no entanto, é também o reino, dominado ditatorialmente pelo malfadado “ulex”.
E para complicar a tarefa, o evento constava de duas etapas de distância média, uma de manhã (3.600 mts) e outra ao início da tarde (3.300 mts), em que fomos obrigados a percorrer os mesmos terrenos e envolver-nos numa dupla luta, contra aquele mato caótico. Reconheço que os nossos “Amigos” demonstraram ser…de “Peniche”. - “Se querem uma prova a sério para homens (e porque não mulheres?) de barba rija…tomem lá…rompam o fato, rasguem a pele e depilem (ou depenem?) os espinhos”.
Ambos os percursos tiveram os mesmos locais de partidas e chegadas, apresentando idêntico desnível (150) e número de balizas (16), só que os traçados variaram substancialmente – o que subimos de manhã, descemos à tarde e vice-versa. As ditas reviravoltas de mapa que tudo transforma. Tudo não! O raio do tojo continuou a ditar as suas leis (ui!...arranquei mais um).
Honra seja feita ao traçador, conseguiu evitar a repetição de pontos, julgo que em todos os escalões, e com estas condições de vegetação agreste, foi o melhor que se pode arranjar. No fundo, proporcionou-nos pernadas com várias opções de progressão, o que não deixa de ser um facto extremamente positivo.
Mal entrei em prova, ao subir a extensa rampa até ao triângulo, constatando o imenso manancial de mato, comentei cá para o meu fecho éclair – “Luís põe-te fino, foge-me desse tojo e poupa-te nas trepadelas”. Minutos mais tarde, já nada deste aviso fazia qualquer sentido. Encontrava-me completamente absorto na procura do segundo ponto, que de tão camuflado junto a um muro, me enredou em novelos de “ulex” e escapou à vista mais de dois minutos. Para começar não podia ser mais pé de chumbo (hehe!). E os picos? Ai, ai…
Após mais um controlo acessível, apanho um trilho junto a uma linha de água e desato a dar à perna, pensando em recuperar algum tempo para a escarpa do “71”. Quando me apercebo, estou numa ampla clareira, bastante mais à frente. Retrocedo, fico com o “tonton” em loop, zango-me com a demasiada pressa do “berdadeiro” e lá vão mais quatro minutos para a “corda do sino”.
Como por encanto, baixa-me uma luz divina – “Oh seu palerma! Porque achas que estás a correr demais? Tomaste algum tónico ou será que a escala é menor?” – Glup! Engoli em seco, bati na testa (ou na pala do boné) e “voilá”, pois…a escala é de 7.500. Mas eu sabia, juro que sabia, só que me deu uma branca.
Após este lapso de memória, continuou a dura batalha com o abespinhado tojo, que me ia atacando ferozmente, deixando-me num estado de “berdadeiro” mártir orientista. Foram oito pernadas bem conseguidas, ora em área aberta onde os picos andavam à solta, ora em zona de floresta carregada de silvados, que por acaso também provocam uns belos duns arranhões (grrr..que ódio).
Rumo ao ponto 13, por entre um emaranhado de muros e vegetação selvagem e perigosa (arre…mais uma esfoladela), tive sérios problemas em descortinar a ínfima faixa de floresta penetrável, precisamente onde se localizava o pedregulho que escondia o prisma.
Tinha idealizado um tempo à volta da uma hora (continua o lirismo), mas gastei mais uma dezena de minutos, sobretudo por não me agradar ser flagelado constantemente pelo massacrante “ulex europeaus” – passei toda a manhã a fugir dele a “sete pés”.
Depois da tempestade…surgiu a bonança. Se tinha passado um mau bocado (se calhar até foi óptimo, mas enfim…), veio um providencial período de repouso, para elevar a qualidade de vida do “berdadeiro” orientista. Relaxar durante umas horas, na frondosa zona envolvente da Capela de S. Mamede, onde se instalou a Arena, enquanto se eliminava rapidamente uma “bolonhesa” regada com “mini” fresquinha, seguido de uma sesta profilática, foram momentos de delicioso remanso, para concorrer com qualquer sofisticado “spa” da nossa praça. Agora sim, compreendo o conceito de amizade dos “Amigos”.
Interromperam-me a soneca. Eram horas de voltar a “dar o corpo ao manifesto” (manifesto = tojo). A segunda volta não pressupunha surpresas de maior, afinal o mapa era o mesmo, mas abordado de forma inversa. Só que nestas coisas da Orientação, nem tudo o que parece evidente o é efectivamente.
No meio da subida para o triângulo, ainda sob o efeito dum despertar meio estremunhado, ao analisar o mapa, não atento às irregularidades do piso, tropeço violentamente num calhau e “atiro-me” para o chão de maneira algo desamparada. Ao defender-me, coloquei as mãos à frente e aterrei no “único” monte de tojo que existia naquele carreiro. Escuso-me de comentar os desabafos inapropriados, que tive de exprimir a plenos pulmões (peço desculpa às senhoras que me seguiam) para me aliviar as dores da alma.
Há males que vêm por bem. Este incidente teve o condão de me acordar e pôr mais esperto, com os sentidos em alerta. Apesar de combalido pela aterragem forçada, controlei os dois pontos iniciais facilmente, para enfrentar a pernada-rainha do evento, que nos levaria ao topo duma íngreme penedia (mais de cem metros), para picar o “36”.
Houve quem afirmasse, que a opção tomada por quase toda a gente, não foi a ideal. Contudo, a encosta que decidimos escalar, estava repleta de concorrentes dos mais variados escalões, empoleirados e em equilibrio precário, fazendo lembrar um colorido rebanho de radicais cabras monteses. Ora, aqui o bode velho não ia ficar atrás, não é? Upa! Vamos lá subir. A alternativa de contornar a reentrância, é solução para “meninos de leite” e “pastores” incapacitados.
Valeu tudo, para levar de vencida a escarpa pedregosa, recheada de “ulex”, sempre pronto a aplicar-nos mais uma aguilhoada. Trepei, bufei, arranhei, desesperei, escorreguei, furei, saltei, blasfemei (quando por engano me agarrava a um ramo de tojo), mas sobretudo não despreguei os olhos lá do alto, para não deixar fugir a “pedrola”, que eu fixei (e muito bem) como sendo a morada do meu objectivo. O esforço foi devidamente recompensado, pois a baliza estava lá (ai dela!...e de mim!)
Não obstante este obstáculo de respeito, a maior parte dos atletas melhorou substancialmente as suas performances, em relação à prova matinal, com raras excepções, onde se pode incluir o “berdadeiro” e a sua cara-metade. Denotando uma apurada sensibilidade para os aspectos da natureza, demoramos um pouco mais de tempo que o desejável, para podermos desfrutar convenientemente dos montes de S. Mamede e das suas excepcionais vistas. São vícios residuais dos tempos da “espécie”, que espero sejam tratados com compreensão pelos responsáveis do nosso clube.
Ai…ai…que me aleijei. Julgo ter extraído da minha maltratada epiderme, o “milionésimo centésimo quarto” pico de origem “ulexiana”.