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(IV) - Tentativa de extinção

O que estou aqui a fazer? O “espécie” deveria estar “morto” e enterrado, ou pelo menos extinto, pois essa foi a intenção do traçador de percursos, da primeira eliminatória de distância longa, que se desenrolou nos pinhais de Pataias. Mas não, continuo “vivinho da silva” (por agora) e com a mesma vontade de vos confidenciar as minhas desventuras.
 
A etapa tinha tudo para dar certo. Os 7.200 metros não eram distância que me assustasse (ui! se fosse nas “pedrolas”), o desnível enquadrava-se nos parâmetros razoáveis (para os “greatest 50`s”), identificava-me com o género de terreno (as belas dunas), a temperatura estava amena (o calor abafa-me), não era o último a partir (detesto a solidão) e o mais importante, já tinha calcorreado estas florestas em duas ou três ocasiões, com resultados satisfatórios, portanto sentia-me confiante, talvez em excesso. Pelos vistos, nenhuma destas “vantajosas” coincidências teve qualquer influência no meu desempenho.
 
A festa neste dia ainda se apresentava mais efervescente. As excelentes condições da arena, que foi escolhida a dedo, numa zona de pinhal extremamente limpa, junto ao aparcamento, facilitava toda a logística do evento e proporcionavam naturalmente a boa disposição. Com as chegadas localizadas bem no centro da área da concentração, tive oportunidade de presenciar alguns atletas mais emblemáticos a terminarem as suas provas.
 
Vivi um momento particularmente emocionante (deixei cair uma lágrima no ombro da minha mulher), com a chegada dos nonagenários Elizabeth Brown e Erkki Luntamo (um sprint final de fazer inveja a muito jovem), que com a sua perseverança, força de vontade e uma invejável longevidade, continuam a participar nestes eventos e a conseguir resultados positivos, mau grado algumas limitações físicas que vão surgindo com a idade. Considero-os, a par de uma restrita meia dúzia, os super-herois da nossa modalidade.
 
Não via a hora de me embrenhar na mata. A minha motivação era imensa e auto-confiança não faltava. Apenas um pormenor me estava a escapar, o de tomar em atenção que a prova se referia a um campeonato do mundo e com certeza os traçados dos percursos iriam ter um grau de exigência de acordo com a grandeza da competição. Tarde demais para o “espécie”, quando confrontado com os problemas técnicos e físicos, que o traçador meticulosamente preparara.
 
À medida que ia percorrendo as pernadas iniciais, comecei a perceber que algo não batia certo. Mesmo sem grandes pastorícias, todos os pontos pareciam demasiado complicados, o que me obrigava a um desgaste físico extra. Quando alcancei o ponto 7, já levava mais de trinta minutos de prova (ainda faltavam dez balizas), mas se tecnicamente tentava não cometer erros irreparáveis, fisicamente as coisas não estavam a correr bem.
 
Definitivamente o traçador não gostou de ver o “espécie de orientista” inscrito na sua prova. “Ai queres meter-te com os craques? Ora toma que é para aprenderes!”. Terá sido mais ou menos esta a estratégia do senhor traçador. O trajecto foi superiormente esquematizado, mas sem permitir grandes veleidades a quem tem limitações. A ideia era a extinção total da espécie logo no primeiro dia, olá se era!
 
Naturalmente, que eu fui dando uma ajuda aqui e acolá, para que isso viesse a acontecer. As opções que ia tomando nas progressões mais extensas, vinham ao encontro das intenções de quem traçou os percursos, sempre pela óptica mais difícil. Quem me mandou trepar a duna do ponto 3, pelo lado mais íngreme? Se tinha um caminho mesmo à mão para o ponto 6, porque raio decidi ir a azimute, apanhando um carrossel de pequenas colinas? Sou masoquista, suicida ou cúmplice do traçador?
 
Se até ao já referido ponto 7, sofri o meu quinhão a valer, a partir daqui encetei um processo de orientação, que ia degenerando em “vias de extinção” do “espécie”. Durante a pernada mais longa (8/9), efectuei uma quantidade de barbaridades com limites de vegetação e curvas de nível, e não fora uma “mãozinha” misericordiosa duma compatriota do Orimarão, a esta hora estariam a ler um testamento.
 
Depois desta “viagem” atribulada (20 minutos), ainda sonhei que poderia compor alguma coisa, nos percursos que faltavam. Puro engano. O traçador tinha ainda reservado mais uma tentativa, de acabar de uma vez por todas com a raça. O espectacular ponto “103”. Confesso que toda a progressão para este ponto me deu um gozo extraordinário, mas tudo foi realizado demasiado lento, perante a luta titânica do “espécie” e traçador.
 
Imaginem um monte em duna, com vegetação densa numa das encostas, na outra, uma rampa íngreme semeada de arbustos rasteiros e muita, muita areia. E o ponto? Não adivinham? Colocado bem lá no alto, numa clareira, que se assemelhava em tudo à cratera dum vulcão. Escalei quase de gatas, agarrando-me a tudo o que encontrava (ai…uma silva), debaixo duma torreira asfixiante (saudade das minhas “minis”), tentando evitar a extinção, a que alguém se propusera. Lá no alto só me faltou espetar a bandeira.
 
Nesta altura, com mais de uma hora de prova, só pensava como haveria de a concluir, mas o cansaço começava a pesar e ainda faltavam seis pontos, que representavam pouco menos de dois mil metros. Haveria mais alguma surpresa para evitar? Pelo que tinha passado já nada me iria surpreender, mas o traçador já dera a sua tarefa por concluída, aguardava pacientemente que o “espécie” tombasse por exaustão. Bem podia esperar sentado.
 
Ainda demorei uns intermináveis trinta minutos para terminar, mas a tentativa de extinção do “espécie” não tinha surtido efeito. No final, ao analisar as classificações, constatei um facto, no mínimo surpreendente, existem por esse mundo fora outras raças da espécie de orientação, para além da autóctone “Lusytanus Orientatis”. 

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sexta-feira, 19 de abril de 2024 – 03:54:03

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